Nos últimos meses, regressou ao debate público o tema da reorganização territorial da Proteção Civil, onde a opção poderá passar pela reinstalação dos anteriores comandos distritais e a eliminação dos atuais comandos sub-regionais. Criados em 2023, os comandos sub-regionais promoveram um alinhamento da organização da Proteção Civil com a delimitação dos territórios das Comunidades Intermunicipais (CIM).
A proposta de reversão desta medida merece uma reflexão séria e profunda, não só pelos impactos operacionais que poderá causar, mas sobretudo pelas implicações que acarreta na coesão e eficácia da própria arquitetura institucional do Estado Português.
A organização do território constitui uma das manifestações mais claras da ação de um Estado. Como tal, quando diferentes setores da administração pública seguem lógicas territoriais díspares, instala-se uma enorme desarticulação institucional. Esta fragmentação conduz à sobreposição de estruturas e, inevitavelmente, a uma acentuada ineficiência. Por isso, qualquer retrocesso para o modelo distrital, como se recomenda agora na Proteção Civil, representa não só uma inversão da estratégia, mas uma rutura significativa com a coerência exigida à ação pública no século XXI.
É neste contexto que importa analisar a proposta de retomar o modelo distrital, uma herança do século XIX, instituída em 1835 por Passos Manuel, e que hoje representa um anacronismo administrativo sem precedentes. Os distritos foram relevantes num determinado contexto histórico do país, mas hoje encontram-se totalmente desajustados da realidade administrativa contemporânea. Embora subsistam como base dos círculos eleitorais para a Assembleia da República, não têm órgãos administrativos próprios desde a extinção dos Governadores Civis. Estão ausentes da lógica de financiamento europeu, não constituem uma referência na gestão e no ordenamento do território e encontram-se cada vez mais afastados das dinâmicas reais e atuais de Portugal.
Ora, a atual organização da Proteção Civil em comandos sub-regionais foi concebida para se ajustar à realidade territorial do país tal como ele é hoje, mais articulada com os municípios, mais consciente das especificidades locais e mais preparada para responder a riscos cada vez mais complexos num contexto de alterações climáticas. A ideia foi simples e clara, aproximar as estruturas Proteção Civil das pessoas e dos territórios, reforçando a articulação com quem está no terreno e, naturalmente, conhece melhor o território. Ainda assim, estamos a falar de um modelo recente, que precisa de tempo para ser testado, afinado e validado. É natural que existam constrangimentos iniciais, mas o caminho deveria ser o da otimização e do reforço do atual modelo, e não o seu abandono prematuro.
Portugal tem sido, historicamente, um país onde a política pública muitas vezes responde de forma reativa. Quando ocorre uma tragédia, como os incêndios de 2017, reformulam-se leis, reorganizam-se estruturas e anunciam-se mudanças profundas. No entanto, nem sempre conseguimos consolidar essas transformações ou assegurar melhorias sustentadas no terreno. No que concerne especificamente aos incêndios rurais, por exemplo, a criação do Sistema de Gestão de Informação de Incêndios Florestais (SGIFR) e a própria reformulação da governança da Proteção Civil, permitiu dar dados os primeiros passos num caminho, a longo prazo, mais coerente e estruturado.
No caso da Proteção Civil, a atual estrutura sub-regional não nasceu de um impulso político, mas sim de um profundo processo, construído com base em estudos técnicos e recomendações de diversas comissões independentes (como as que analisaram os incêndios de 2017). A proposta de reversão deste modelo coloca em causa o conhecimento científico e, inclusive, compromete investimentos significativos realizados ao abrigo do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), bem como o esforço feito nos últimos anos para “territorializar” a Proteção Civil e aproximá-la das comunidades e das instituições locais. Mais grave ainda, trata-se de introduzir no seio do Estado mais uma duplicidade de geografias administrativas, o que poderá confundir os agentes no terreno, fragilizar as redes de cooperação intermunicipal e comprometer a lógica de governação territorial da administração pública. Numa emergência, onde cada segundo conta, esta indefinição territorial pode comprometer a coordenação, atrasar decisões e enfraquecer uma resposta robusta.
É legítimo e até necessário debater os constrangimentos que ainda persistem na implementação do modelo sub-regional, nomeadamente no que diz respeito à definição de competências e à operacionalização dos comandos. Mas estes desafios resolvem-se com correções e não com ruturas abruptas, até porque não é possível construir um Estado moderno tendo por base estruturas do século XIX. A resposta aos riscos do presente e do futuro exige proximidade, flexibilidade, especialização e integração territorial.
Portugal precisa de uma estrutura do Estado coerente com o território. Esta não é uma questão meramente técnica, mas sim uma exigência de eficácia, de justiça e de confiança nas instituições. E, nesse caminho, a Proteção Civil deve ser um exemplo, e não uma exceção à lógica da racionalidade.
Diogo Miguel Pinto
Geógrafo Mestre Riscos, Cidades e Ordenamento do Território Pós-graduado em Sistemas de Informação Geográfica e Direito da Proteção Civil. Investigador do CEGOT e Membro do CEIPC.