Alice Berenguel tem 69 anos e uma vida cheia de histórias e boas recordações, que começam no país onde nasceu, Angola, e que têm continuidade em Baião, o concelho que adotou e “onde se sente como na sua terra natal”.
“Nasci em Saurimo, uma cidade muito parecida com Baião, por isso aqui sinto-me como estivesse lá, e até este frio é parecido”, contou ao nossoterritório.pt.
Professora, cantora, jornalista, embaixadora e escritora, Alice dedica parte dos dias a escrever, tendo como inspiração o concelho de Baião e as suas vivências e como destinatárias as crianças, com quem trabalhou desde muito nova.
“Estudei até ao sétimo ano e fui para o magistério primário, porque sempre tive muita paixão por crianças desde criança. Foi uma experiência muito boa e comecei a aplicar canções no ensino, canções com a tabuada, com meses do ano e com as cores e foi um sucesso, as canções foram gravadas e ajudavam a ensinar os alunos”, contou Alice.
Por orientações do Governo de então, que tinha acabado de alcançar a independência, Alice fez um curso de educação física, porque havia a necessidade de massificar a atividade desportiva para formar as crianças e para preparar festivais desportivos.
Devido às coreografias de ginástica rítmica e as canções feitas por Alice, a portuguesa e angolana, como se define, dado que é filha de pai português e nasceu quando Angola era portuguesa, foi convidada e participou em dois festivais desportivos, sendo a coordenadora de 1.500 crianças.
O trabalho desenvolvido com as crianças e a dinâmica que ainda hoje tem, Alice foi convidada para integrar a Rádio Nacional de Angola e, apesar do ministério não ter aceite a desvinculação, Alice saiu à revelia, “porque era um desafio muito grande”, disse.
Na Rádio Nacional de Angola, Alice Berenguel teve um mentor, Otaviano Correia, que também é escritor, português e angolano, com quem aprendeu muitas coisas. Ali era guionista do programa Rádio Piô e trabalhava com crianças, organizando festivais para o dia 1 de Junho.
“Eu fazia uma séria de coisas, era argumentista, figurinistas e levada as crianças para o estúdio para gravar músicas, que eram lindíssimas”, recorda Alice.
Com as alterações no regime de Angola e a necessidade de Alice ter um ordenado maior, surgiu a oportunidade de ir trabalhar para a Embaixada da Itália. Apesar de não saber falar italiano, Alice aplicou-se a aprendeu a língua e ainda hoje guarda dois dicionários “históricos” de português – italiano e italiano – português.
Durante o tempo que trabalhou na Embaixada da Itália, Alice Berenguel não deixou a paixão pelas crianças e continuou a trabalhar em programas direcionadas aos mais novos, tendo mais de 60 músicas gravadas.
Alice lamenta não haver uma rádio que dedique um programa aos mais pequenos, com as crianças a serem as protagonistas. Algo que gostaria de dinamizar e se prontificou a ajudar na preparação do mesmo.
Da embaixada, onde tinha uma vida “muito bonita e diplomática”, Alice abraçou um novo projeto a nível televisivo, novamente direcionado para os mais novos. No ano de 2000, vai trabalhar para a televisão, com o programa Cozinha dos Pequeninos, onde cozinhava com as crianças.
Em Angola, Alice foi e ainda é conhecida pela vóvó Ximinha, através do programa Angolândia, um mundo alegre das crianças.
“A vóvó Chininha a é herança de uma senhora que era benzedeira, curava maleitas de crianças, e quando via uma criança que não estivesse a ser bem tratada repreendia a mãe e eu era muito assim”, salientou Alice, contando que se lembra de “uma vez parar o carro para deixar passar uma mãe e uma criança, que ia assustada, e a mãe puxa-lhe pelo braço dá-lhe umas palmadas”. Alice saiu do carro e aconselhou-a não fazer aquilo.
No programa, a vóvó Chininha contava histórias, dava conselhos e tinha sempre avós e pais convidados.
Quando surge a pandemia de covid-19, a televisão onde Alice trabalhava desafiou-a a criar um programa para que distraísse os mais pequenos do que se estava a passar a nível mundial.
Alice deitou mãos à obra e criou um programa, com cenários feitos à mão, que passava duas vezes por dia para as crianças. Contava histórias, ensinava a fazer brinquedos e colocava as crianças a partilhar o resultado final com o programa.
Alice Berenguel era a única a ter licença para sair de casa durante o confinamento para gravar o programa e, quando a polícia a mandava parar, já gracejava a dizer: “é a nossa vóvó”.
A pandemia alterou toda a vida e dinâmica de Alice e da família, sobretudo quando perde um amigo, vítima da doença. “O João Oliveira era uma pessoa alegre, bem-disposto e foi-se com covid”, conta Alice, emocionada pela perda do amigo de mais de 30 anos.
Aquele episódio despertou um alerta nos filhos de Alice, que perceberam não haver condições para continuar em Angola.
“De um dia para o outro eu e o meu marido arrumamos tudo e saímos de Angola. Tínhamos casa em Baião e foi para aqui que viemos e nos sentimos em segurança”, recorda.
Ainda com contrato com a televisão, Alice veio para Portugal sem avisar que a intenção era vir definitivamente. “Custou-me dar essa notícia pesada, disse que vinha por tempo indeterminado e comprometi-me a gravar um ano de programas”, disse Alice, que durante vários dias gravava das 05:00 às 22:00.
Em Baião, Alice procura partilhar os seus conhecimentos e continuar a ajudar a comunidade, tendo já integrado uma associação do concelho e feito com ela atividades de Natal, “que foram espetaculares”, frisou, lamentando não se ter continuado a fazer.
É também em Baião que Alice encontra inspiração para escrever e, em janeiro, será lançado o seu terceiro livro, o primeiro em Portugal, com o título “Bimbo e os amigos no jardim”, uma história inspirada no filho mais novo.
“É um livro que as crianças e jovens vão gostar muito e que eu quero apresentar de forma lúdica. As crianças merecem toda a atenção e precisam de sonhar. Gosto que elas entrem na história e este livro tem um diálogo muito bonito e cómico”, avançou Alice.
Mãe de seis filhos, avó de 12 netos e de dois bisnetos, Alice está longe da família, que a visita regularmente, mas diz ter encontrado em Baião “o sossego de uma vida agitada que teve, o frio que adora e o ouvir os passarinhos a cantar logo pela manhã na zona de Freixieiro”.



